Esperança
A partir de “Os Memoráveis”,
de Lídia Jorge
Personagens:
- Miss Machado
- Americanos
- Chefe Nunes
- Bronze
- Tião
- Umbela
- Salamidas
- Charlie 8
ATO I
Oito horas em ponto. Deposição pacífica. Já
haviam passado dois dias e nada de grave tinha acontecido.
Cena 1
(Miss Machado acompanhada por um grupo de
Americanos que conversam entre si sobre o 25 de Abril numa biblioteca)
Americano: Pode
crer, Miss Machado que nunca encontrei ao longo do meu percurso um povo tão
sensato como aquele que você pertence. Um povo pobre, sem letras, cinquenta
anos a viver em ditadura e, de repente, do nada fazem um golpe de Estado.
Naquele dia, todos saíram à rua para gritar, uns ameaçavam-se, outros estavam
armados, insultavam-se, batiam-se, mas não se mataram. É esta a realidade que
preciso de contar antes que seja tarde. Compreende o que estou a dizer?
Miss Machado: (A ouvir e a pensar em tudo o que ele
dizia)
Se compreendo? Eu
não preciso de compreender! Tudo o que ele diz é um facto, e não há como
contrariar.
Cena 2
Todos se encontram na casa de uns Americanos
onde continuam a falar do dia da revolução e de Portugal
Americano:
Eu falo do povo, mas o povo tem assinatura. O Lourenço é um dos que fez a
assinatura. Almoçámos várias vezes juntos. Esse ainda continua vivo e o
Carvalho também, mas o Antunes e o Salgueiro, infelizmente não. Meu Deus, o
Salgueiro era um menino… só tinha quarenta e sete anos e deixou-nos (emocionado). Pessoas maravilhosas que
morreram, povo maravilhoso, cidade encantadora, onde passei os melhores
momentos da minha vida. E muitos amigos chegados lá deixei!
ATO II
Cena 1
Miss Machado: (Limpa a carrada de poeira que se
havia depositado no vidro e na moldura lacada. Senta-se no último degrau do
escadote de Jacob e olha profundamente para um fotografia, pensativa) Nesta fotografia, António Machado ocupava o
primeiro plano esquerdo de um grupo de vários, e Rosé Honoré sentada à direita
ocupava um plano intermédio no canto da mesa. Ali estavam os dois separados
pela mesa.
(Em voz alta) –
Lembrava-me o que costumavam dizer- tirámos-lhes as gárgulas - ela dizia sempre
isso. (Referindo-se a Rosé Honoré)
(Meia hora depois, Miss Machado ainda pensa na
fotografia que encontrou)
Miss Machado: Eu conhecia a maior parte dos sublevados que
ali se encontravam, sabia que no verso da fotografia, havia uma legenda escrita
pela mão de Rosé Honoré ainda que não me lembrasse dos detalhes. Não há mais dúvida
alguma, eu vou servir-me da fotografia estou segura que fiz o meu achado.
Ato III
Passados seis meses, já em Portugal, Miss
Machado reúne todos os que ainda restavam da fotografia para uma conversa, num
restaurante em Lisbo, a sobre o dia da revolução.
Cena 1
Chefe Nune: Pois
bem (esfrega as mãos), posso dizer-lhe que tinha ido amanhecer à baixa. Entrava
e saía das lojas quando a coluna militar entrava a subir na direção do Rossio.
Quando a vi avançar, soube logo o que se passava, esqueci-me de tudo e gritei:
“Levem-me a mim pessoal! Arranquem-me a cabeça do corpo e façam dela uma bala.”
Estava eufórico, andei atrás deles o dia todo, assisti a tudo. Lisboa era uma
festa pegada, dei por mim em vários locais da cidade ao mesmo tempo. Juro,
aquele foi o dia mais feliz da minha vida!
(Miss Machado coloca também questões ao
Coronel Bronze sobre o dia da Liberdade)
Miss Machado: Falemos, então, senhor Coronel, daquele dia, o
primeiro dia da Liberdade. Em seu entender, como classifica o que se passou
naquele dia?
(Bronze começa à procura de uma palavra)
Bronze: “Milagre”,
é isso mesmo! Classifico-o como obra de um milagre, minha senhora.
Miss Machado: E milagre, porquê?
Bronze:
Primeiro, e contra tudo o que era de prever, um dos alferes desobedeceu ao que
estava planeado e não deu ordem para abrir fogo. Segundo, todas as poças de
fogo que era suposto serem disparadas numa praça mantiveram-se inertes.
Terceiro, as armas que iam afundar uma corveta ao lado do Cristo Rei
mantiveram-se caladas. Quarto, um capitão deu ordem para abrir fogo contra a
frontaria de um quartel e o companheiro que estava no cano não disparou.
Quinto, o chefe de Estado, encurralado no quartel, mandou abrir fogo sobre a
cidade, mas o comandante da guarda mesmo sendo-lhe fiel, não cumpriu a ordem.
Sexto, quando no quartel alguém estava prestes a soltar a palavra de ordem
fatídica, umas crianças em fuga surgiram no corredor e essa imagem evitou o
cumprimento da ordem. E assim se foi de milagre em milagre até à vitória
final.
(Tião fala também sobre a sua experiência no
dia da Revolução)
Tião: Naquela manhã, acordei estranho! Peguei na
Leica e fui para a rua tomar um café, mas nada se passava em Lisboa, o mundo
parecia-me cinzento e nada merecia entrar na minha Leica. Fui na direção da
Agfa onde havia encomendado material, umas semanas atrás. Levantei os rolos,
paguei e pensei que tudo nesta vida era para nada.
De repente
(entusiasmado) pela rua da Conceição vi uma coluna militar ao fundo e a avançar
para o Rossio; quando os tanques surgiram confirmei, finalmente, o que se
passava. Avancei e gritei: -Eh! Passem por cima de mim, eu quero ser o vosso
tapete…e corri atrás deles no meio de toda aquela multidão. Nessa noite não me
deitei, Lisboa tinha-se transformado num lugar sem paredes.
(Entra em cena Umbela)
Miss Machado: (aparte)
Umbela tinha sido um dos oito assaltantes do Rádio Clube e, sem o seu
depoimento, parte do nosso projeto assente na fotografia de grupo sofreria um
rude golpe. A sua figura era imprescindível.
Umbela:
Era fim-de-semana e fomos ter ao local onde trocámos impressões sobre as horas
e os passos. Havia sido ali! O antigo batalhão de caçadores 5, testa de ferro
do Antigo Regime, vigiado por todos os lados, numa hora de sonolência havia
deixado escapar para a rua a mosca revolucionária.
(Margarida Lota ouvia com atenção tudo o que
Umbela explicava e cada vez se impressionava mais com determinadas revelações.
Lamentava porque só tinham seis granadas de bazuca para assaltarem aquele
quartel, mas mesmo assim, desesperados, tinham acreditado na sua força e haviam
resistido).
Salamidas:
Então foi assim, meus amigos. Eramos cem, saímos pela porta lateral e encaminhámo-nos
para a Rua Garrett, Chiado acima, já seriam umas três da manhã…no Largo de Camões
não havia uma alma viva nem nada parecido com uma revolução. Pensámos se
teríamos colocado mesmo a canção do Zeca no ar, ou se tudo não passaria de uma
fantasia das nossas cabeças. Já haviam passados três horas desde que a emissão
tinha ido para o ar, quando ouvi dizer, e quase perdendo a esperança, que se
aproximava uma coluna de tanques carregados de soldados com a população da
cidade a correr atrás, aos gritos de incitação. Parece que a ressurreição veio
ter comigo, aquela que mais tarde disse “Vocês são livres de rir”.
(Miss Machado dirige-se a Charlie 8, mulher
de um dos homens da fotografia que já havia falecido)
Miss Machado: Gostava que invocasse o que disse o seu
marido quando percebeu que a operação Fim de Regime iria ser um sucesso.
Charlie 8:
Vou então dizer o que sei! Naquela
manhã, na Ribeira das Naus, o meu marido percebeu que estava em marcha uma
grande vitória, quando um dos seus tenentes avançou em direção ao adversário
levando, como todos os outros, um lenço branco na mão. O Brigadeiro recebeu-o à
bofetada e mandou abrir fogo sobre ele, mas o coronel não o fez. Aí, o meu
marido pensou que estavam salvos, porque mesmo havendo 5 mil efetivos dispersos
no terreno estavam todos unidos pela amizade. Aquele embate com o tenente
aconteceu as dez da manhã, e o meu marido sempre disse que essa tinha sido a
primeira página de uma folha decisiva.
Ato III
Cena Final
(Todos se dirigem para a frente do palco… as
luzes apagam-se, ficando apenas uma a iluminar Miss Machado.)
Miss Machado: Nem sempre a história é um pesadelo de que em
vão tentamos acordar para regressar ao ponto partida. Por vezes, a história
também é um sonho agradável que não queremos esquecer e tentamos que seja
sempre lembrado. Um dia, tal como um sonho, todos serão lembrados, tenho a
certeza absoluta de que no futuro ninguém será esquecido.
Todos:
Há-de haver um lugar onde seja possível lembrarmo-nos de tudo e de todos.
Silencio é morte
e tu, se te calas
morres, e nós
também
e se falas
morres e nós
também
então diz e
morre. E nós também.
Érica, 10LH3